Os dados disponíveis mostram que a cada ano a polícia brasileira – militar e civil – mata mais pessoas. Com 6.375 vítimas de violência policial em 2019 (um aumento de 3% em relação a 2018), o Brasil alcançou um novo recorde. A taxa de letalidade policial, ou seja, ‘mortes violentas’ resultantes da intervenção policial, varia muito de estado para estado (sendo muito alta nos estados do Amapá ou Rio de Janeiro e baixa no Distrito Federal ou no estado de Minas Gerais). Os períodos de (semi)-isolamento devido à pandemia não mitigaram esta violência: no primeiro semestre de 2020, os números mostram um aumento de 6% no número de pessoas mortas pela polícia em comparação com o primeiro semestre de 2019.

O perfil das vítimas mostra como a violência policial é uma grande manifestação do racismo estrutural contra as populações negras e « periféricas ». Os casos de João Pedro, Mizael ou Rogério são emblemáticos: os jovens negros das favelas são particularmente visados por esta violência. Em média, 79,1% das pessoas mortas em 2019 durante as intervenções policiais são negras. Da mesma forma, a polícia mata 2,8 vezes mais negros do que brancos. Por fim, 65% dos policiais assassinados são negros (embora representem apenas 44,9% da força de trabalho).

Diferentes chaves de análise nos permitem compreender a extensão e o caráter direcionado desta violência policial. Estudos, como os de Maria Carolina de Camargo Schlittler e Julliana Borges, mostram que o racismo estrutura os métodos de operação policial e que a prática do rastreio facial visa essencialmente os jovens negros da periferia.

Outra chave de análise diz respeito à impunidade que envolve tal violência. Segundo Ariel de Castro Alves, advogado e membro do « Grupo Tortura Nunca Mais », menos de 10% dos crimes cometidos pela polícia resultam em uma condenação, o que alimenta um sentimento de impunidade ou mesmo de validação desta violência. Durante o ano de 2020, o Juiz do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, ordenou, entre outras medidas, que a polícia militar do Rio preserve e fotografe as cenas do crime antes de levar os corpos para o hospital. Esta decisão foi tomada graças ao trabalho de lobby e advocacia das organizações locais e internacionais de direitos humanos, que em 2009 e 2016 haviam mostrado como os policiais alteraram as cenas para justificar a letalidade de suas operações.

As diversas corporações policiais – militares e civis – estão entre as poucas instituições que não foram reformadas após o fim da ditadura militar. O legado de um modelo de « segurança pública » baseado na repressão continua a ser transmitido, juntamente com a doutrina da segurança nacional e a ideologia da guerra (contra as drogas). Estas corporações nunca estiveram tão presentes no governo: um total de 6.157 soldados ativos e de reserva. Dos 22 ministros, 9 são reservistas, uma proporção nunca alcançada mesmo sob a ditadura.

Para Luiz Eduardo Soares, pesquisador pioneiro e ex-secretário de Estado de Segurança Pública no Brasil, o atual governo é « um poder fascista militarizado que iniciou uma ‘ruptura’ democrática« . Para ele, os sinais em 2020 são « alarmantes, conspícuos e em constante aumento ». Uma crise em fevereiro de 2020 revelou um movimento preocupante dentro das corporações policiais. A polícia militar no estado do Ceará entrou em motim. O motim foi sem precedentes em sua forma violenta e suas consequências: cenas de terror nas ruas e um ataque à vida de um senador que interveio contra o motim. Na opinião de vários observadores, como a jornalista Eliane Brum, os jovens oficiais militares se sentem politicamente apoiados e leais ao « Capitão Bolsonaro », liberados de seu dever para com o comando dos governadores dos estados. O autoritarismo de Bolsonaro alimentou assim uma « ala radicalizada » que se opõe veementemente à integração de qualquer reflexão sobre os direitos humanos dentro da corporação.

Os movimentos sociais e os habitantes das favelas estão protestando contra esta violência e militarização dos territórios. Organizados em coletivos, redes e grupos, eles procuram proteger suas vidas e exigem uma política de segurança pública que sirva aos direitos do povo e não seja dirigida contra eles.

 

Exemplo de resistência: ADPF das favelas


Diante da brutalidade policial e do aumento desproporcional do número de vítimas da violência policial durante a pandemia no Rio de Janeiro, uma ação de denúncia e resistência foi montada em 2020, a ADPF 635 (Argumentação de Desrespeito ao Princípio Fundamental), conhecida como a « ADPF das Favelas ». É uma ação construída coletivamente com o Tribunal Público do Estado do Rio de Janeiro, organizações da sociedade civil, coletivos e movimentos sociais ligados às favelas e às mães das vítimas. A ação exige que as graves violações causadas pela política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro contra a população negra e pobre da periferia e das favelas sejam reconhecidas e punidas. O julgamento da ADPF das Favelas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) começa em 17 de abril de 2020, quando o relator, Ministro Edson Fachin, vota a favor de algumas das medidas de proteção exigidas. No início de junho, ele suspende temporariamente as operações policiais nas favelas enquanto durar a crise sanitária. Os efeitos da medida de proteção são espetaculares: de 5 a 19 de junho, o número de mortes relacionadas às operações policiais caiu 75,5%. Embora a suspensão das ações policiais durante a pandemia seja uma vitória, a ADPF Favelas pretende ir mais longe, através da construção de uma política de segurança pública que garanta a vida nas favelas e nas periferias. Em nota, as instituições e movimentos articulados dentro da ADPF 635 afirmam: « Comemoramos a decisão do STF, que reconheceu que as favelas fazem parte da cidade e que a política de ‘matadouro’ adotada pelo Governador Wilson Witzel viola os direitos fundamentais e é racista. Continuaremos mobilizados para monitorar e impor o cumprimento das determinações. A luta continua!« 

Citação

« O que eles chamam de ‘balas perdidas’, eu chamo de ‘impunidade' ».

Márcia de Oliveira Silva Jacintho (Mãe de Maio cujo filho foi assassinado na periferia do Rio de Janeiro)